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O diques da Rua Uruguai

Recordações do tempo que brincávamos na lama

03/06/2024 às 14h52 Atualizada em 03/06/2024 às 15h00
Por: Jalmo Fornari
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O diques da Rua Uruguai

A cidade da minha infância tinha ruas largas e barrentas. Ainda muito pequeno, pude assistir às primeiras obras de colocação de paralelepípedos. A avenida Santa Rosa, que só anos mais tarde fiquei sabendo que era em homenagem à cidade de Santa Rosa e não a uma das muitas santas a quem minha mãe devotava, foi a primeira a receber a melhoria. Lembro que os caminhões descarregavam as cargas de basalto, e os homens, cada um responsável por uma carreira definida por duas linhas de aprumo, calçavam pedra por pedra. Como eram irregulares, eram obrigados a quebrá-las para adequá-las aos espaços desejados. Era uma sinfonia de sons provocados pelas marteladas dos obreiros. Era o "som do progresso" que encantava muitas pessoas que paravam nas laterais, onde mais tarde seriam construídos os passeios, assistindo àquela profusão de arte e barulho.

Eu, mesmo muito pequeno, adorava ver os operários cobrindo aos poucos a rua com os montes que desapareciam na medida em que a obra avançava. Muitas vezes, meus irmãos mais velhos iam me buscar a pedido da mãe, quando não era a própria que me fazia retornar para casa, arrastado por uma orelha.

Nos dias de chuva, no verão, quando conseguíamos driblar a atenção de mamãe, nos reuníamos com a molecada da Rua Uruguai e íamos brincar na lama. A maior aventura era criar diques nas sarjetas por onde corria uma água escura e barrenta, misturada com tocos de cigarro, papéis velhos e folhas das muitas árvores que existiam nas alamedas. Nesta empreitada, éramos sempre derrotados, pois quanto maior o dique, mais água era retida e mais força ela adquiria para romper nossas obras. Outra aventura era escorregar na lama, onde os tombos inevitáveis acabavam rasgando nossos toscos calções de pano. Eram diversões em meio à sujeira e lama que duravam até que nossas mães nos levavam para dentro de casa, onde, depois de umas palmadas ou uns bons "pitos", nos trancavam no banheiro e descarregavam um balde de água fria nas nossas costas.

Sim, éramos felizes percorrendo a rua embarrada ou correndo irresponsavelmente atrás de raríssimos automóveis que passavam por lá. Adorávamos mesmo era ver eles patinando na subida dos Meijer. Nos dias secos, a rua se tornava nosso imenso parque de diversão. Lá jogávamos bolitas, "léjo" ou "bojo", entre gritos de "prima sô!" ou "não dou nicas!" entre outras gírias infantis. Havia alguns piás que jogavam taco rudimentar. Raríssimas vezes aparecia alguém de bicicleta, o que despertava nosso ciúme e atenção, quando não reunia quase todos nós, curiosos,  em torno dela. Na rua, também montávamos goleiras e fazíamos peladas de "meia linha" com bola de pano. Sim, sentávamos no meio da via, despreocupados com o trânsito, para jogar 5 marias ou simplesmente conversar. Por ela, rodávamos os pneus velhos ou puxávamos nossos carrinhos de madeira, obras de uma engenharia infantil. Em geral, para construí-los, pegávamos uma lasca de lenha de 40 centímetros, pregávamos uma cabine feita com meia lata de azeite "Corcovado", onde cortávamos as janelas. Os eixos eram feitos de pequenos toquinhos roliços, tendo chapinhas de garrafa simulando calotas. Além dos caminhõezinhos, tinha também a temporada de carro de lombas, onde os mais velhos desciam em disparada a rua Guaranis em direção à marcenaria do Irton Werthc. Assim, passávamos horas, dias, anos brincando na velha rua Uruguai.

Além dos brinquedos e jogos, tinha o "camói" (polícia e ladrão), onde nossa arma era um galho seco ou o dedo em riste mesmo. O "esconde-esconde" e, para os bem pequenos, brinquedos de roda como o "passa, passa, passará", e a "ciranda-cirandinha". Havia a brincadeira do "verde", que impunha uma pena para quem não tivesse algo verde consigo. Criatividade e opções para brincar era o que não faltava, uma vez que tínhamos o principal, a rua, a velha rua Uruguai.

Nos dias frios e de chuva, vivíamos a monotonia de animais enjaulados. Como não podíamos brincar nos quartos, coisa que só fazíamos à noite nas fantásticas guerras de travesseiros, que sempre acabavam em briga e não raros castigos, ficávamos espiando a chuva através da janela embaçada. Na rua, a água lavava tudo, afundava ainda mais as sarjetas e, vez por outra, trazia flutuando um maço vazio de cigarros de marcas como "Tufuma, Hollywood ou Belmont". Foi uma infância simples e distante, mas que ainda serve para alimentar saudades.

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Jalmo Fornari
Sobre o blog/coluna
Jalmo Fornari é diretor-proprietário do Sistema Província de Comunicação. Jornalista já atuou nos principais veículo de comunicação do Rio Grande do Sul, como as rádios Gaúcha e Guaíba. Também é advogado com pós graduação em direito previdenciário. Como político foi vereador em Tenente Portela por diversos mandatos, tendo ocupado por diversos momentos o cargo de prefeito. Nesta coluna você acompanha crônicas, textos e memórias.
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