No coração verde do extremo noroeste gaúcho, um rio canta. Canta alto, rouco, ancestral. É o Yucumã — "grande roncador", dizem os indígenas, e o nome faz justiça à sinfonia de águas que desaba em queda longitudinal, como se a terra tivesse se aberto para mostrar a garganta da natureza. Do lado argentino, chamam-no de Moconá — “o que tudo engole” — numa poética convergência de nomes e significados.
Ali, entre árvores centenárias, cipós entrelaçados e o eco do Uruguai cavando vales, viveu um homem que também parecia nascido da floresta. Chamavam-no de João do Mato, mas o nome não era apelido: era descrição.
João era guarda florestal quando ainda se entendia esse ofício como missão. Foi um dos primeiros no Parque Estadual do Turvo — e, se fosse lenda, caberia melhor num livro de fábulas do que numa folha de ponto. Com voz baixa, gestos largos e olhos que sabiam narrar o tempo, João do Mato contava histórias como quem planta árvores: deixava raízes.
Dizia ter sido da Coluna Prestes. Sabia onde estavam escondidas as armas dos revoltosos que não cruzaram o Guarita. Talvez tenha inventado tudo. Talvez não. Mas ninguém saía de uma conversa com ele sem acreditar um pouco mais em encantamentos. Tinha alma de contador, corpo de andarilho e memória de arquivo vivo.
Viveu com os indígenas. Aprendeu a curar com folhas. Descrevia fantasmas na mata como quem narra um jogo de futebol — com detalhes, emoção e pausas dramáticas. Guardava segredos. Tinha seus silêncios. Mas, quando falava, a floresta escutava.
Com mais de cem anos, ainda andava pelas ruas de Portela, a pequena cidade onde a mata parece parar para descansar. Pedia pouco. Queria apenas um enterro digno. Pediu isso ao amigo cronista — com quem conversava desde os anos 1990 — como quem confia uma muda de planta: com delicadeza e esperança.
Pouco antes, havia lhe pedido um gesto simbólico: ser padrinho da oficialização de seu último amor. A noiva, quase setenta anos mais jovem, o acompanhava pelas ruas dois passos atrás, levando seus guardados em uma mala de garupa. Era cena de um tempo que só ele sabia manter em cartaz.
João do Mato, ou Sarampião, era desses personagens que uma cidade não pode esquecer. Está lá, nos anais da Câmara, o título de Cidadão Portelense. Está lá, no Parque do Turvo, o pequeno córrego que leva seu nome — serpenteando silencioso, como ele fazia pelas trilhas da mata.
Mas seu verdadeiro legado é outro: uma floresta de memórias. Um relicário de histórias vividas, contadas e ouvidas. Um homem que plantou respeito onde hoje tantos veem apenas árvores.
E isso, mais do que qualquer documento, é o que define uma vida bem vivida.