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“Entre cafés, filmes e fuscas”

Do tempo em que o cinema nos leva longe

Por: Jalmo Fornari
14/04/2025 às 15h40
“Entre cafés, filmes e fuscas”

Houve um tempo em que falar de cinema era como embarcar numa viagem sem sair do lugar. As imagens da tela grande se misturavam às conversas, e os filmes — ora heróis, ora vilões — eram dissecados com a paixão de quem descobria o mundo. Na minha trajetória, cruzei com duas figuras que transformaram essa paixão em algo maior, quase sagrado: Luiz Carlos Merten, o crítico que parecia carregar a história da sétima arte nos bolsos, e Aníbal Damasceno Ferreira, o professor que via no cinema um oráculo de verdades e surpresas.

Com Merten, tudo começou no burburinho do “Porta Larga”, um bar encravado na Cascatinha quase esquina com a Ipiranga, em Porto Alegre, onde as portas largas de armazém convidavam todo tipo de gente: jornalistas, cronistas, fotógrafos, porteiros, narradores esportivos e até seguranças da RBS. Era o nosso ponto de encontro, o palco onde a redação, já exausta do dia, despejava suas ideias num balcão de fórmica. Quando o expediente murchava, lá estávamos nós, carregando cadernos, cigarros e opiniões sobre o mundo. Política, futebol, mulheres, arte — tudo cabia na mesa. Mas o cinema, ah, o cinema reinava.

Eu, um repórter de olhos arregalados, sentava ao lado de Merten — então editor de cinema do Zero Hora, com passagens pela mítica Folha da Manhã dos Caldas. Ele era um poço de saber, mas sem arrogância. Tinha paciência para ouvir meus risos ainda verdes sobre os filmes que eu pescava no Cacique ou no Avenida, aquele cinema de esquina na Venâncio Aires com a João Pessoa, onde o cheiro de pipoca disputava espaço com o mofo das poltronas. Falávamos de tudo: dos clássicos que eu descobria com atraso, vindo do interior da Portela, até os lançamentos que ele destrinchava com explicações de mestre. Certa vez, enquanto o copo de cerveja esquentava na mesa, ele me fez enxergar Cidadão Kane como um quebra-cabeça humano — e não apenas como “o maior filme de todos os tempos”. E eu, que mal sabia segurar uma caneta, saía dali com a cabeça zunindo, como se tivesse acabado de assistir à obra-prima de Welles pela primeira vez.

Merten não era só um crítico — era um contador de histórias. Sabia falar de um diretor, do brilho de uma atriz, da curva de um roteiro, sem nunca me fazer sentir pequeno. E olha que eu, com meus 20 e poucos anos, tinha mais entusiasmo do que argumentos. Hoje, quando penso naqueles fins de tarde, sinto o peso doce da saudade. O “Porta Larga” já não existe, mas as conversas com Merten ainda ecoam, como um filme que não sai da memória.

Já o outro mestre, Aníbal Damasceno Ferreira, era um caso à parte. Professor da PUC, carregava uma aura de profeta excêntrico, com ditados que repetia como mantras e uma paixão pelo cinema que transbordava. Nos anos 80, fui destacado pela Rádio Gaúcha para cobrir o Festival de Cinema de Gramado — aquele do Sargento Getúlio, com um Lima Duarte que parecia carregar o sertão nos olhos. Foi um mergulho e tanto. Entrevistar Henriqueta Brieba ao vivo no programa de Celso Ferreira, com o coração na mão; passar duas horas ouvindo Grande Otelo, sóbrio e generoso, contar sua vida numa cafeteria do Hotel Serra Azul; e, num momento que só Gramado poderia proporcionar, sentar num muro de calçada para ouvir as loucuras geniais de José Celso Martinez — tudo isso virou memória rara.

Mas o que mais me marcou foi o retorno a Porto Alegre, com Damasceno ao meu lado. Eu, jovem de fusca laranja; ele, um sessentão de ideias afiadas — como sou eu agora, ao escrever estas linhas. Passamos horas destrinchando os filmes do festival, as cenas que nos marcaram, os diretores que ele idolatrava. Damasceno tinha um jeito único de enxergar o cinema. Para ele, cada fotograma era uma janela para o mundo. Às vezes, ele pegava carona comigo até a Azenha, onde morava, e o fusca virava um confessionário de ideias. Falávamos de Sargento Getúlio, de Roma, Cidade Aberta, de roteiros que nos faziam rir ou chorar. E, quando uma conversa parecia fechar um ciclo, ele soltava seu adágio português, num tom meio solene, meio debochado:
— Jalmo! Tudo como dantes no velho quartel de Abrantes...
Eu ria, sem saber direito o que Abrantes tinha a ver com a história, mas adorava.

Hoje, o fusca laranja é só lembrança, como o “Porta Larga” e as noites de Gramado. Merten e Damasceno, cada um a seu modo, me ensinaram que o cinema não é só o que se vê na tela — é o que se carrega depois, nas conversas, nos bares, nas caronas. Era um tempo em que falar de filmes era viajar sem passagem, sonhar sem dormir. E, se fecho os olhos, ainda ouço o eco da voz de Damasceno, o tilintar dos copos no bar, a promessa de que, no próximo filme, o mundo seria outro. Só me resta a saudade — e esse baú de memórias que, como um bom clássico, nunca desbota.

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Jalmo Fornari
Jalmo Fornari
Jalmo Fornari é diretor-proprietário do Sistema Província de Comunicação. Jornalista já atuou nos principais veículo de comunicação do Rio Grande do Sul, como as rádios Gaúcha e Guaíba. Também é advogado com pós graduação em direito previdenciário. Como político foi vereador em Tenente Portela por diversos mandatos, tendo ocupado por diversos momentos o cargo de prefeito. Nesta coluna você acompanha crônicas, textos e memórias.
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