O Alencar era uma figura cativante e folclórica, famosa por pregar peças. Era farmacêutico por herança familiar, nunca frequentou uma faculdade, mas, assim como assumiu o comércio do pai após o falecimento dele, parecia ter herdado também todo o conhecimento do finado seu João. Em uma cidade pequena, com poucos médicos, era ele quem receitava remédios para as doenças mais corriqueiras. Mas não vamos falar aqui do farmacêutico, e sim do simpático e rechonchudo Alencar.
O outro personagem desta história é o Cirilo. Já contamos várias aventuras protagonizadas por ele, mas nunca é demais revisitar o taxista exótico de fala enrolada, que misturava grotescamente seu sotaque "alemão batata". Além disso, era um verdadeiro campeão de batidas e arranhões no trânsito de uma cidade onde, para encontrar outro carro, às vezes era necessário esperar minutos na avenida principal, mesmo em horário de expediente. Ainda assim, Cirilo dava um jeito de causar: quando não atingia outro veículo, era um poste ou uma árvore que pagava o preço. Ele é a vítima desta história.
Cirilo ganhava a vida como taxista, trabalhando com seu Aero Willys no ponto de táxi em frente à Igreja Matriz. O ponto era praticamente sua segunda casa. Quando não estava atendendo algum passageiro, geralmente ligando a cidade a localidades do interior, passava ali o dia inteiro, desde a manhã cedo até a alta madrugada. Naquela época, a cripta da Igreja abrigava provisoriamente um ginásio escolar, que havia sido destruído por um incêndio meses antes. Assim, após um dia de corridas levando doentes ou apressados para suas casas, Cirilo tinha o costume de se deitar em uma larga tábua sob a meia-água do ponto de táxi, onde dormia profundamente – e roncava alto.
Foi em uma dessas noites que Alencar, já há dias planejando uma de suas "sacanagens", decidiu agir. Ao passar pelo ponto e ver Cirilo dormindo, roncando como se fosse dono da serenata, pegou quatro velas que estavam no porta-luvas de seu carro, cuidadosamente guardadas para essa ocasião. Ele as acendeu e colocou nos quatro cantos da tábua que servia de cama. O lusco-fusco das chamas, dançando sob a brisa suave, deu à cena um ar quase macabro.
Com o cenário montado, Alencar começou a entoar uma oração em voz alta e solene:
"Senhor, dai-lhe o descanso eterno... Ave Maria, cheia de graça..."
Curiosos que passavam pelo local paravam para olhar, tentando entender o que estava acontecendo. Assim que a sineta do colégio tocou, os alunos começaram a sair e, entre risos e cochichos, perceberam a brincadeira. Entraram na onda, formando um pequeno coro de vozes misturando rezas e risadas.
Quando viu que Cirilo começava a se mexer, ameaçando acordar, Alencar escapuliu silenciosamente. Pouco depois, o taxista despertou. Ao abrir os olhos e se deparar com as velas e a “cerimônia” fúnebre ao redor, levou um susto que quase o fez enfartar. Depois de esfregar os olhos e se dar conta de que estava deitado em sua "mortalha", pegou a tábua nos braços e saiu correndo, feito um alucinado, atrás da piazada que fugia em todas as direções.
Alencar, já a uma boa distância, ria tanto no carro que mal conseguia respirar.