Ele caminhava pelas ruas empoeiradas da nossa infância com roupas largas e desbotadas, herança de almas caridosas que doavam mais por hábito do que por afeição. Era um personagem real, mas também uma figura que alimentava o imaginário de um tempo em que ser diferente era quase uma sentença. Ninguém falava em “bullying” — a palavra sequer existia —, mas a prática, ainda que inconsciente, estava presente em cada gesto nosso.
As meninas tremiam ao vê-lo. Quando o mudinho do padre se aproximava do pátio do colégio das irmãs, era como se um vento gelado soprasse, e elas fugiam em disparada para o alpendre, clamando por proteção. Nós, os meninos, nos sentíamos desafiados. Era a nossa chance de impressionar as meninas. Cutucá-lo pelas costas ou atirar pedras à distância eram rituais que garantiam risadas nervosas e olhares de aprovação. Ele, com sua figura desajeitada, o andar manco e aquele sorriso quase infantil — mas vazio de dentes —, tornava-se nosso brinquedo, nosso teste de bravura.
No entanto, havia algo mais. Ele não era apenas o “bicho-papão” inventado pelos pais para calar crianças desobedientes. Era uma presença constante na pequena Portela, quase um símbolo vivo daquele mundo esquecido pela pressa. Dizíamos apenas “o mudo do padre” porque ele vivia num galpão da paróquia, recebendo diariamente um prato de comida e, quem sabe, um vislumbre de compaixão. Sua rotina era simples e enigmática. Quando não era alvo de nossas maldades, perambulava pelas ruas com uma lata pendurada no pescoço. Batia nela com afinco, produzindo sons desordenados, como se sua alma, também em desalinho, tentasse se comunicar com o mundo que o ignorava.
Aquele ritmo — sem música, sem propósito aparente — marcava os dias. Às vezes, parecia que a lata era o único elo entre ele e o restante de nós, uma tentativa frustrada de dizer algo que jamais entenderíamos. Era como se, no som do metal contra o metal, ele gritasse aquilo que a sua boca não podia pronunciar.
Um dia, porém, percebemos que ele não estava mais lá. Foi como se tivesse evaporado, deixando para trás apenas o eco de sua lata. Houve quem dissesse que ele partira, cansado das pedras e das zombarias. Outros sussurravam que ele simplesmente desaparecera, talvez vencido pelo frio de uma madrugada qualquer no galpão da paróquia. Mas a verdade é que ninguém se importou o suficiente para buscar respostas.
Ficaram as histórias. Histórias de um tempo em que nossas brincadeiras eram, na verdade, atos de crueldade travestidos de diversão. Hoje, com o peso das memórias, percebemos que ele era mais do que um homem diferente: era um espelho que refletia nossa própria indiferença. Ele vive em nossas lembranças com seu sorriso ingênuo, seus dentes ralos e apodrecidos, e aquele jeito de criança aprisionada em um corpo de adulto, clamando por um carinho que nunca chegou.
Talvez o mudinho do padre não fosse apenas um personagem da nossa infância. Talvez fosse o retrato de algo maior — um grito abafado de todas as diferenças que aprendemos a temer e rejeitar. E, assim como ele, essas diferenças seguem desaparecendo, uma por uma, sem que sequer notemos.