João do Mato, O Guarda Florestal que Contava Histórias
O Parque Estadual do Turvo é uma louvável reserva preservada de mata subtropical no extremo noroeste do Rio Grande do Sul, um relicário de singular flora e fauna. E, como isso não bastasse, abriga a maior queda longitudinal de águas do planeta: o majestoso “Yucumã”, que para nós e para os índios de nossa margem assim se chama. Na outra margem, no lado dos hermanos, que por sinal pouco se vê das quedas, é conhecido como “El Moconá”. Tanto lá como aqui, as cataratas têm seus nomes associados à imponência e magnitude. Yucumã, o nome dado ao salto no Brasil, significa "grande roncador", pois a visão frontal do salto, que só pode ser observada do lado brasileiro, ressalta sua grandiosidade. Já o nome dado ao salto na Argentina, “Moconá”, que significa "o que tudo engole", refere-se ao fluxo turbulento das águas, gerado pela forte vazão. A impressionante beleza das quedas é a joia guardada no relicário do Parque do Turvo, e é sobre a singular figura de um guarda florestal, passou a vida embalado pelo rugido do Yucumã, defendendo a integridade da mata e que virou um mito da defesa ambiental que eu conto esta história.
Além do Rio Uruguai, que separa os dois países, existem, nas entranhas dos 7.491,40 hectares de florestas que abarcam quase a metade da área da pequena Derrubadas, um riacho que leva o mesmo nome do homem que dedicou sua vida à proteção da natureza: meu saudoso amigo João Martins Fiuza, o João do Mato, também conhecido como o Sarampião. Ele foi pioneiro nestes costilhares do Uruguai; talvez por isso se tornou um nome conhecido em toda a região. Era uma figura lendária que transformou seu trabalho de guarda florestal em arte, tornando-se exuberante nas conversas e nas pacientes histórias que relatava, que ainda hoje existem para serem contadas.
O mérito de seu pioneirismo nunca foi motivo de vanglória. Mesmo sendo um dos primeiros Guardas Florestais do Turvo, em todos os seus relatos, fazia questão de incluir que trabalhou ao lado de Rosalino Prates, outro pioneiro, e que juntos, em anos difíceis, construíram uma vida dedicada à tutela da floresta, que felizmente sobreviveu na região. A bem da verdade, com sua calma e parcimônia, João do Mato era um homem que sabia contar histórias, interpretando-as enquanto narrava com a voz baixa e surda, com os olhos, com caretas e gestos que dimensionavam precisamente as situações vividas na floresta. Suas histórias não eram apenas relatos; eram as pedras de rodagem da vida.
Ele falava de suas lembranças de menino em Águas do Mel, nome antigo, de seu tempo, do atual município de Iraí, onde se criou; de suas homéricas aventuras como guerrilheiro da revolucionária Coluna Prestes, que pretendia reescrever a história do País; e de suas meticulosas memórias sobre onde foram escondidas as armas dos revoltosos que decidiram não atravessar o rio Guarita, entre eles o próprio Sarampião, que confessava querer ficar em seu torrão. Suas memórias eram uma fonte infinita de maravilhas e impressões, e seu olhar era capaz de transportar os que o ouviam aos tempos passados, quando o mundo era mais puro, mais heroico, mas mais simples.
Falava longamente dos anos em que viveu com os indígenas, de quem aprendeu a sobreviver no mato e a curar com remédios naturais. Além de afirmar que era um defensor das flores, adorava contar sobre seus mistérios, como os supostos tesouros dos jesuítas, que ele jurava serem verdadeiros. Seus olhos brilhavam e exigiam atenção quando contava dos barulhos, ruídos e estalos na mata nas noites escuras, quando era obrigado a pernoitar no âmago da floresta. Sim, adorava descrever o apavorante barulho dos fantasmas que se perderam nas trilhas noturnas e que ousavam pedir socorro nas madrugadas. Dele ouvi muitas histórias.
Com mais de cem anos, João do Mato ainda percorria as ruas da nossa cidade, com a memória viva e presente em seus olhos. Pouco tempo antes de partir, ele me procurou e, com muita cautela e cerimônia, pediu que cuidasse para que fosse enterrado decentemente. Não precisava tanto; era meu amigo. Embora fosse um pedido simples, no fundo era revelador da importância que João do Mato dava à sua dignidade humana. Meses antes do pedido para que não fosse esquecido, ele, que durante a vida teve outros relacionamentos, deixando vários filhos, me pediu que fosse o padrinho da oficialização de seu último relacionamento amoroso. A pretendente era uma mulher jovem, com cerca de setenta anos menos que ele, que percorria as ruas dois passos atrás dele, levando uma mala de garupa com seus guardados.
Essa foi uma das últimas vezes que eu o vi. Antes, era uma visita frequente que eu recebia lá no início dos anos 90. João do Mato era um homem que tinha suas particularidades, suas manias e seus segredos. Mas era, acima de tudo, um homem que amava a natureza e a vida. Seu legado é uma série de histórias e memórias que já começam a se desvanecer no imaginário popular, mas que continuam a inspirar e emocionar quando lembramos daquela figura.
Restam histórias e estórias, e nos anais do legislativo da nossa cidade, resta a concessão do título de cidadão portelense, decorrente do reconhecimento de sua trajetória em defesa da natureza. Resta o pequeno córrego, o lajeado Fiuza, que, se esgueirando entre árvores, pedras e vegetação preservada, banha o Parque do Turvo e leva o seu nome, um tributo ao homem que dedicou sua vida à proteção da natureza. João do Mato, Sarampião, foi mais do que um Guarda Florestal; foi um construtor de memórias e um guardião do passado. E isso é uma herança que não pode ser perdida.
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