Em 1985, Tancredo Neves deveria ter assumido a presidência, mas acabou ficando pelo caminho, vítima de um problema de saúde que o levou a uma mesa de cirurgia e, em seguida, à UTI, na véspera da posse. Quem assumiu a presidência da República foi o maranhense José Sarney, ex-presidente da ARENA, um partido que existia apenas para apoiar os militares. Sobrevivente como sempre, dizem que Sarney esteve ao lado do poder desde JK até Dilma. Quando percebeu a mudança dos ventos, passou a apoiar a proposta da chamada “Nova República”. Foi indicado vice na chapa de Tancredo Neves e, por uma reviravolta do destino, tornou-se o primeiro presidente do período democrático pós-ditadura militar.
Por aqui, ou melhor, em Portela e redondezas, também sopravam os ventos da Nova República. Onde antes havia prefeitos nomeados, foram realizadas eleições-tampão, e o povo do PMDB acabou se elegendo com votos que iludiram alguns, deixando a falsa impressão de um prestígio que não tinham. Venceram as primeiras eleições democráticas, porque até um “luluzinho” ganhava naquela época, desde que fosse contra a ARENA, ou seja, opositor da ditadura que caía por obsoleta e abjeta.
Mas não eram só as prefeituras que se renovavam; associações e, principalmente, sindicatos também passavam por mudanças, especialmente os sindicatos dos trabalhadores rurais na região. As estruturas viciadas e comprometidas com o antigo regime perdiam espaço. Era hora de renovar e mudar. Muitas vezes, a oposição, massacrada nos últimos anos, nem sempre permitia a sobrevivência de lideranças preparadas. Mas quem vencia, imaginando-se um arauto no combate à corrupção semeada pela ditadura, assumia em nome da austeridade. Assim era nos primeiros meses, nas prefeituras e nos sindicatos.
O Ivo, um alemão de voz rouca e sotaque germânico que lembrava os primeiros colonos da região, daqueles que naturalmente trocavam o “P” pelo “B” e vice-versa, se candidatou a presidir um sindicato da região. E não deu outra: venceu de lavada.
Após a proclamação dos resultados, houve a tradicional cervejada na longa noite de posse. Nos dias seguintes, Ivo reuniu e liderou a nova diretoria, onde foram traçadas metas ambiciosas, como sempre são as metas que traçamos quando desconhecemos as minúcias e os meandros do terreno em que pretendemos caminhar. Coisas como reduzir o quadro de pessoal para poder fazer isso ou aquilo, direcionar atenções para o plantio de hortaliças, lutar por preços mínimos maiores, etc.
Na hora de mexer no quadro de pessoal, Ivo pediu que alguém lhe fornecesse a folha de pagamentos. Em poucos minutos, Elisabeth lhe entregou uma cópia do documento, previamente xerocada. O alemão olha, olha, olha aquelas duas folhas, altera a ordem e volta à sequência original. Cola a primeira folha na mesa e, segurando a última espichada à sua frente, com os olhos esbugalhados e suando, coloca a segunda folha sobre a mesa. Ele era muito gordo. Levanta os olhos, olha para os mais próximos e, em seguida, volta a focar na última folha à sua frente. Pega uma caneta Bic cristal e faz um círculo no papel.
— “Alquém de focês zabe me dizer guem é esde zenhor ‘Tôtal’? Nem breciso de muido esduto parra saper que esde citatão deve ser temedido. Ele canha mais que dodo mundo junto!”
Ninguém ousou retrucar. Com muito jeito — e ela tinha muito jeito mesmo —, Elisabeth explicou ao presidente que “Tôtal” era o TOTAL dos salários pagos.
Os dias passaram. Ninguém foi demitido. Aliás, alguns meses depois, muitos outros foram admitidos.
Mín. 10° Máx. 25°